O médico que atende no sistema SUS e em hostais particulares de Feira de Santana Dr. Tarcísio Torres Pedreira, enviou na última quinta-feira (19) uma carta para o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta. Ele chama atenção do ministro para o avanço do Coronavirus na Bahia e faz um importante alerta.
veja a carta na integra:
Motivado por imensurável preocupação, encaminha-lhe essa carta um médico baiano de 35 anos. Creio que ela não chegará a vossa excelência. Caso chegue, só existe um assunto que nesse momento possibilitaria a sua leitura até o final: O CORONAVÍRUS. A pandemia invadiu as nossas casas, seja pela porta, pelos veículos de comunicação ou pelas redes sociais. Não se fala em outra coisa. O Brasil está com medo. É tanta notícia negativa, que o pânico, embora pouco resolutivo, seja quase inevitável, pois a situação atual é de guerra.
São milhares de mortos diariamente pelo mundo. A China foi golpeada sem tempo hábil para defesa. A Itália assiste a uma tragédia por dia: um verdadeiro filme de terror. É sabido por vossa excelência que lá, por falta de vagas em UTIs, nossos colegas médicos estão sendo obrigados a escolher quem vive e quem morre. As famílias estão sequer tendo o direito de sepultar seus entes queridos com dignidade. São muitos outros países já afetados.
O que parecia distante chegou ao Brasil. Mortes já começaram a aparecer. São inúmeros novos casos a cada amanhecer. A todo instante recebo mensagens de amigos que buscam em nós, profissionais de saúde, respostas que muitas vezes não temos. São pacientes procurando unidades de saúde preocupados se estão ou não contaminados. Pacientes com diversas patologias estão deixando de procurar atendimento médico com receio de contato com pessoas contaminadas. Tenho assistido uma inusitada e louvável mobilização nacional que se caracteriza, paradoxalmente, pela campanha em prol do isolamento social e pela admirável união de um povo.
Torna-se fundamental registrar, porém, que a vontade e o empenho do nosso povo de vencer o coronavírus não podem romantizar a realidade dos fatos. A maioria da população brasileira se contaminará nos próximos meses. Isso é um fato. Serão milhares de mortos, notadamente idosos e pacientes com doenças crônicas. Vossa excelência, inclusive, já reconheceu em pronunciamento recente a possibilidade de realizarmos exames apenas nos pacientes graves devido à escassez de kits. No mesmo momento, o senhor verbalizou que os próximos meses serão duros e estressantes. Permita-me, senhor ministro, “duros” quanto? Se todas as medidas tomadas pelo poder público forem bem sucedidas, qual a estimativa de óbitos no Brasil? Perdoe-me pelas indagações, mas elas são frutos da preocupação de um filho de pais idosos e, portanto, vulneráveis. Mais que isso, as perguntas são resultado da angústia de um jovem médico que apesar de 10 anos trabalhando em unidades de pronto-socorro não tem estrutura emocional para ter que escolher quem viverá e quem morrerá. Lembro que na Itália é essa a situação atual. Ou seja, o colapso do nosso sistema de saúde é questão de semanas.
A tragédia está anunciada e é praticamente inevitável, mas devemos ao menos amenizá-la. Assim sendo, em tom desprovido de provocação, no intuito de abrir uma discussão complexa, questiono-lhe: considerando-se que o coronavírus atingirá quase toda a população brasileira, não seria razoável discutirmos quem adoecer primeiro? Na ausência de uma vacina, não seria o contágio natural, com o devido isolamento, uma forma de evitar a transmissão comunitária, acelerar o processo de imunização de mais de 50% da população e abreviar a crise de saúde pública e econômica que enfrentaremos? Acredita-se que a transmissibilidade do vírus se inicia alguns dias antes do aparecimento de qualquer sintoma. Ou seja, pessoas que trabalham diretamente em hospitais e que pertencem ao grupo de menor risco (18-40 anos) que por ventura se voluntariassem para uma exposição/contaminação propositada, seguida de aquartelamento, não seriam mais veículos de transmissão do coronavírus. Para essa finalidade poderia se utilizar grandes escolas, hotéis desativados, prédios públicos, quartéis, etc.
Num primeiro momento cheguei a me questionar sobre a razoabilidade desse pensamento. Acontece, entretanto, que apesar de a mortalidade da COVID-19 ser relativamente baixa, a sua rápida velocidade de transmissão e sua alta morbidade para os grupos de risco geraram caos em todos os países envolvidos. Aqui no Brasil não será diferente. É questão de tempo. Precisamos estar à frente do vírus. A imunização natural, daquela população que naturalmente se infectará por estarem mais expostos, diminuiria a quantidade de familiares contaminados, diminuiriam a possibilidade de faltarem profissionais em momentos mais críticos, amenizaria a crise do sistema de saúde, encurtaria a crise econômica e certamente preveniria muitas mortes de brasileiros.
Esclareço que não estou sugerindo que a população deixe de se proteger para adquirir uma possível imunidade. Isso seria uma insanidade e certamente trágico. Pelo contrário, estou sugerindo que se abra uma discussão sobre uma possível imunização natural daquelas pessoas que tem menos de 40 anos, que façam parte do grupo de pessoas que inevitavelmente se contaminará e que se disponibilizem para essa missão.
Aproveito, para registrar que faço parte da população citada. Tenho 35 anos, sou médico, moro sozinho, trabalho em emergências públicas e privadas todos os dias. A minha contaminação é questão de tempo. Se a maioria da população terá coronavirus nos próximos meses, o que falar de mim que estou diariamente atendendo pacientes nas unidades de pronto-atendimento? Tenho tomado todos os cuidados possíveis, mas única possibilidade de eu realmente me proteger desse vírus seria parar de trabalhar. Não posso fazer isso no momento que meu país mais precisa de mim. Mas também não posso me omitir sabendo que eu sou um transmissor em potencial. Tenho certeza que como eu, muitos outros profissionais tem a mesma preocupação. Não queremos ser o principal veículo de contaminação do nosso povo.
Além de médico, sou oficial da reserva do Exército Brasileiro e esse é um momento de guerra. Não há como negar! Lamentavelmente o inimigo é forte e invisível, mas podemos combatê-lo se agirmos com rapidez, inteligência e coragem. Considerando que eu não tenho nenhuma doença crônica, a probabilidade de morte se eu fosse chamado para uma guerra seria muito maior do que pela COVID-19. Por isso, coloco-me à inteira disposição do Ministério da Saúde para trabalhar voluntariamente em qualquer hospital que seja direcionado para o atendimento dos pacientes com COVID-19. Aproveito para dizer, que se o Estado Brasileiro julgar que o isolamento domiciliar não é a forma mais segura, disponibilizo-me para permanecer aquartelado desde o primeiro dia de contato com qualquer doente que tenha suspeita de COVID-19.
Senhor Ministro, a minha contaminação é questão de tempo. Estou todos os dias em contato direto com doentes graves. Não quero, num futuro próximo, ser obrigado a escolher quem viverá e quem morrerá, pelo contrário, quero a diminuir a quantidade de mortos no nosso país. Mas para isso, temos que agir imediatamente. Se as medidas forem idênticas às dos outros países, o resultado aqui será mais catastrófico do que está sendo em todo o mundo. Nosso sistema de saúde não aguenta. Precisamos copiar as medidas que deram certo no exterior, sim! Mas elas não são suficientes, precisamos pensar em outras medidas. Temos que agir com originalidade, serenidade e coragem.
Encerro parabenizando a seriedade com que vossa excelência tem tratado essa pandemia desde as primeiras notícias, assim como as ações tomadas até o momento objetivando combatê-la. Porém, tudo que fizermos será pouco. É momento de união entre Estado e povo! Vamos sair mais fortes, certamente! Mas, é momento de se fazer além do que se pode. Estou à disposição!
19/03/20
Dr. Tarcísio Torres Pedreira – CRM/BA 22863